Mobilização pelo desenvolvimento territorial transforma realidades ao fortalecer vínculos, despertar pertencimento e ampliar oportunidades locais

Antes caracterizado como território rural e que chegou a funcionar como lixão, os Amarais, em Campinas, tiveram seu processo de urbanização acelerado nas décadas de 1970 e 1980. A partir do final do século XX, o crescimento populacional e o surgimento de bairros como Jardim Campineiro, São Marcos e Santa Mônica consolidaram esse processo, impulsionando a demanda por infraestrutura básica — como abastecimento de água, energia elétrica e saneamento. Nessa mesma época, comunidade, trabalhadores, entidades e serviços públicos do território dos Amarais, deram-se as mãos num abraço singular que se transformou em laboratório para ações em rede, em prol da população.

A partir de um evento inicial organizado há 27 anos pela União Cristã Feminina e a Escola Estadual 31 de Março, surgiu a Rede Abraço que, ao unir diversos segmentos com atuações individuais, iniciou uma cultura de mobilização no território, coordenando esforços para promover melhorias nos bairros. Nos encontros da Rede Abraço, participavam integrantes da Rede Intersetorial dos Amarais, focada inicialmente na política assistência social e, posteriormente, na educação e saúde. Entre o final de julho e início de agosto de 2019, a Intersetorial passou a fazer suas reuniões separadamente da Rede Abraço, unindo Secretarias Municipais (Saúde, Desenvolvimento e Assistência Social) e seus técnicos, Organizações da Sociedade Civil (OSCs) locais e movimentos sociais para promover melhorias na região.

Em 2022 nasceu o Conexão Quilombo Amarais – Hub de Cidadania Ativa, patrocinado pela Federação das Entidades Assistenciais de Campinas (FEAC), que acolhe coletivos, grupos, empreendedores sociais, individuais e pessoas com projetos de impacto social, oferecendo trilhas formativas, diferentes tipos de suporte técnico e o capital semente para criação ou fortalecimento de ações comunitárias.

Ruth Maria de Oliveira e meninas atendidas no Grupo Primavera

Diante desse histórico, em 2024 a FEAC iniciou a implantação do Desenvolvimento Territorial dos Amarais, programa de escopo abrangente que promove o desenvolvimento territorial nos bairros Jardim São Marcos, Jardim Santa Mônica, Vila Esperança e Jardim Campineiro. Esse mesmo programa originou o Desenvolve Amarais em abril do ano passado, que acabou frutificando com a formação do Comitê Comunitário dos Amarais, em julho, e na sequência, do Fórum de Governança dos Amarais, em dezembro.

Essas iniciativas deram nova estrutura ao desenvolvimento do território. O Comitê já mapeou as lideranças comunitárias, participou da construção do Plano de Desenvolvimento Territorial dos Amarais (PDT) e do Masterplan do Parque Linear Córrego da Lagoa, entre outras atividades.

Para Ruth Maria de Oliveira, gestora executiva do Grupo Primavera – organização social fundada há 44 anos no Jardim São Marcos – o desenvolvimento territorial é uma das formas mais potentes de transformar realidades. “Na região dos Amarais, vimos nascer um movimento que vai além dos projetos e números: ele desperta pertencimento, fortalece laços e cria possibilidades para quem vive no território. Quando a comunidade é ouvida e reconhecida como protagonista, desse processo inspirador surgem ideias e soluções que fazem sentido para o território. É bonito ver pessoas que antes se sentiam invisíveis hoje assumirem o papel de construtoras de um futuro junto com instrumentos públicos, fortalecendo a autoestima e o sentimento de pertencimento em uma cidade da qual não se sentiam parte”, explica.

Na opinião da gestora, essa transformação tem uma história viva e pulsante, que passa pelo trabalho incansável do Grupo Primavera para fortalecer a comunidade – instituição que tem o privilégio de fazer parte da construção do desenvolvimento territorial dos Amarais. “É no Primavera que funciona a sede do Comitê Comunitário e onde acontecem muitas reuniões do Desenvolve Amarais – um espaço de escuta, construção coletiva e articulação entre diferentes atores do território. Em nossa história, os abraços que transformam sempre estiveram presentes, mostrando que a instituição é um símbolo de pertencimento e esperança”, ressalta.

 

 

Organismo plural

Fórum de Governança dos Amarais

Além do Comitê, atualmente 26 instituições do primeiro, segundo e terceiro setor integram o Fórum de Governança dos Amarais – um organismo heterogêneo que reúne muitos atores para resolver problemas do território. O Fórum responde pela elaboração do Plano de Desenvolvimento Territorial dos Amarais, com três diferentes eixos: Desenvolvimento Urbano e Ambiental, voltado à promoção da melhoria da infraestrutura urbana e do meio ambiente; Desenvolvimento Socioeconômico, com foco na promoção de ações ligadas à inclusão produtiva; e de Garantia de Direitos, para o desenvolvimento de ações ligadas às organizações do terceiro setor com foco em temas como saúde, saúde mental, reciclagem, fortalecimento das OSCs etc. Além disso, oferece cursos de qualificação e aperfeiçoamento profissional aos moradores dos Amarais.

“O que o Fórum agrega de concreto ao antigo cenário é reunir diversas instituições públicas, privadas e do terceiro setor para se debruçarem sobre problemas reais do território e buscar soluções para eles. Um exemplo disso é a construção da ciclovia que liga o São Marcos ao Ceasa. Muitos moradores dos Amarais trabalham no Ceasa e vão de bicicleta para o trabalho, utilizando o encostamento da via. Somente um espaço como o Fórum foi capaz de reunir atores sociais tão distintos como a Artesp, Rota das Bandeiras, EMDEC, Secretaria Municipal de Planejamento e Desenvolvimento Urbano) e Comitê Comunitário em torno desse problema”, explica Marcel Carvalho, da consultoria Sociológica, contratada como parceira técnica da FEAC para implementar o Comitê Comunitário e o Fórum de Governança dos Amarais.

Ruth Oliveira complementa: “o desenvolvimento territorial é exatamente isso — união de forças, valorização de saberes locais, e acreditar que cada bairro tem em si a força da mudança, que reforça os vínculos e faz florescer o que cada comunidade tem de melhor. Nos Amarais, essa força pulsa em cada encontro, em cada iniciativa e em cada ação desenvolvida”.

 

 

Família com muitos braços

Nenhuma descrição de foto disponível.

Odilia Souza Martins e seu marido, Paulo Martins

A família de Odilia Souza Martins e seu marido, Paulo Martins, tem uma longa tradição de abraçar quem mais precisa. “Sempre tive vontade de auxiliar as pessoas, eu via os movimentos da comunidade e a necessidade de ajuda. E sei que, para tudo melhorar, é necessário um ambiente diferente”, explica Odilia. Com quase 50 anos de vivência no território, ela lembra que os quatro filhos – hoje adultos – passaram a infância e parte da adolescência no período em que a violência dominava a rotina na região. “Muitos jovens acabaram se perdendo no caminho por falta de conhecimento, por más influências. Era preciso uma família com força para ajudar outras famílias. Nós tivemos dificuldades também, foi difícil, mas a fé, a perseverança e a vontade de vencer para conquistar o melhor nos possibilitou levar o melhor às pessoas”.

O exemplo de Odilia, disposta a abraçar os doentes e os moradores que necessitavam de ajuda, foi seguido pelos filhos em diferentes momentos: no voluntariado do Grupo Primavera, na visita aos enfermos junto com a mãe ou atuando no Centro Assistencial Vedruna, no mesmo bairro – cada um com seu próprio jeito de cuidar dos outros. O marido de Odilia integrou o Sindicato da Construção Civil, fazendo reuniões com trabalhadores dentro da própria casa. “Era o momento de abrir a mente, não só pela fé, mas em prol da Justiça, do bem-estar de todos”. Hoje Paulo Martins auxilia no Centro de Saúde do bairro. “Independentemente de termos no bairro movimentos já organizados, é necessário estar atento à melhora da vida de todos. Sinto que, com o meu trabalho ajudando a comunidade e na paróquia do São Marcos, fui melhorando cada vez mais. Eu oriento, faço aconselhamento e sempre digo: desistir, nunca”.

 

 

Ações voltadas ao bem de todos

Pe. Antônio Alves

Desde 2017 à frente da paróquia do Jardim São Marcos, Padre Antonio Alves tem sido um grande incentivador para que os fiéis se tornem agentes políticos comprometidos com o bem comum. O padre coordena a Cozinha Solidária, um exemplo de trabalho de combate à fome e promoção de dignidade. O projeto ganhou reconhecimento do Papa Francisco por servir, gratuitamente, centenas de refeições balanceadas para pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Nos oito anos em que atua na comunidade, Padre Antonio vivenciou muitas mudanças. “Percebo que, quando o poder público investe nas comunidades, o desenvolvimento é integral. No momento que chega a infraestrutura, a vida das pessoas melhora e toda a comunidade ganha. Quando vim para o território dos Amarais havia uma região não regularizada, os moradores não tinham a posse da terra e havia o receio de que fossem despejados. Graças ao programa do governo federal que trouxe infraestrutura, assistência social e a regularização fundiária, houve crescimento da comunidade. Vejo como é importante a participação de todas as pessoas nas atividades do território buscando o bem comum, a busca dos direitos, o combate à Justiça e a defesa dos vulneráveis”, destaca Padre Antonio.

 

 

Dona Ditinha: uma liderança nata

Dona Ditinha

Benedita Rosa Santana e Silva, a dona Ditinha, faleceu aos 66 anos, vítima de uma pneumonia, há cerca de um mês, mas segue presente no coração de quem a conheceu, por seu espírito incansável e batalhador em prol da comunidade. Seu pai, Manoel Moraes Santana, foi um dos primeiros moradores do “campinho” – uma área de terra batida, onde as crianças jogavam futebol e ao redor da qual surgiu no final da década de 1970 um núcleo residencial do Santa Mônica ao lado da Ceasa, próximo ao Ribeirão Quilombo. Articulado e decidido a trazer melhorias para o local, seu Manoel “trouxe o primeiro poste de energia para o campinho”, relata a neta Gislaine Santana de Oliveira e Silva Souza, filha única de dona Ditinha.

“Todas as casas eram juntinhas, parecia uma aldeia de índios, todas uma ao lado da outra. No final da década de 1980 e começo de 1990, o local era um foco de violência. Com a mesma garra do meu avô, minha mãe começou a participar ativamente de associação de bairro e a correr atrás da prefeitura, pedindo para legalizar as ruas, instalar rede de esgoto, de iluminação e de água, sem medir esforços. Hoje todo mundo tem seu cavalete de água – antes era um cavalete para 20 famílias”, lembra Gislaine.

Líder comunitária nata, “formada em assistência social da vida”, dona Ditinha tinha como prioridade ajudar pessoas do território. “Seu maior feito foi trazer dignidade aos moradores. Se hoje temos uma casa boa, uma rua para poder caminhar, luz para ter conforto, uma torneira para abrir, é porque ela correu atrás de tudo isso”, afirma a filha. Há dois anos, 231 lotes do campinho foram regularizados e os proprietários dos imóveis receberam suas matrículas – uma vitória que rendeu a dona Ditinha uma homenagem do prefeito Dario Saad.

Em seu discurso de agradecimento, a líder comunitária enalteceu o “povo que acredita, espera e participa”. E continuou: “se você chegar na hora certa, marcar uma reunião, conversar, negociar, dentro do diálogo e na coerência, tudo acontece”. A praça do campinho será o início do Parque Linear do Ribeirão Quilombo, um projeto de revitalização ambiental e social que visa transformar as margens do ribeirão em um espaço de lazer, esporte e convivência para a população, além de recuperar a vegetação nativa e o curso d’água, resultante de uma parceria entre Prefeitura e Fundação FEAC. Dona Ditinha não poderá acompanhar esse projeto de perto.

“Mas pelo menos aqui, nesse pedacinho do bairro, no que depender de mim, vou seguir o legado dela. O sonho dela era deixar uma associação de moradores, até conseguiu um terreno. Agora temos que ajudar a transformar isso em realidade. Minha mãe inspirou pessoas a serem independentes, motivou muita gente aqui. Agora é tempo de retribuir”, afirma Gislaine.